Excerto traduzido de
WEATHERBY, Leif. Transplanting the Metaphysical Organ: German Romanticism between Leibniz and Marx. Fortdam University Press, 2016p. 184-187. Tradução de Marcio Miotto, sob propósitos didáticos

(…) Mas se Schelling pegou o termo vita propria de Blumenbach, ele seguiu a tradução de 1789 de Eyerel utilizando o termo “órgão”. Einzelnen Organen, aqui, traduz singularibus partibus corporis, e a modificação estendida no alemão (zu einzelnen Verrichtungen bestimmten) traduz o latino necessário para definir “órgão” (peculiaribus functionibus destinatis). Isso reúne a problemática do órgão que se apresentou a Schelling. Preso em um sistema de forças, o órgão era o local de concretização dessas forças, um receptor flexível de vários campos de potencialidade ligados a essas forças. Mais ainda, órgão era o referendum e o relatum do ser organizado como tal. Sua determinação geral (p. 185) estava naquela relação entre forças em seus efeitos concretos – matérias não são nada além da expressão de “cópulas vivas”, órgãos, vínculos [bands] – e sua particularidade deveria ser descoberta encontrando uma qualidade consistente através da qual esses efeitos eram relacionados com todos os outros e com o sistema mais largo. O órgão tinha uma dupla tarefa e uma dupla estrutura – mas no trabalho de Schelling ele poderia rapidamente ter também uma tarefa e estrutura triplas. Para isso, a eletricidade tinha que ser levada em conta.

Para Schelling nos anos 1790, Qualidade era algo cada vez mais elétrico. Sua guinada para a eletricidade seguiu os desenvolvimentos experimentais especialmente com a “eletricidade animal”. Em 1791, Luigi Galvani publicou os resultados de sua experimentação com pernas seccionadas de sapos, acreditando que teria descoberto energia elétrica – denominada na época como “fluido” – no tecido do animal. Sua descoberta teve um efeito nos círculos letrados da Alemanha apenas descritível pelos termos metafóricos que ganharam seu nome devido àquele efeito: a jovem geração estava galvanizada. O resultado galvânico, entretanto – isto é, a existência do que hoje se chama bioeletricidade – permaneceu um tópico de debate científico até 1840. Alessandro Volta contestou os resultados dos experimentos de Galvani, afirmando que os vários metais usados para produzir a reação é que foram a fonte do impulso elétrico – “eletricidade animal” era um termo precipitado, produzido apenas como resultado da produção da “heterogeneidade” nos metais. Conforme Karl Rothschuh mostrou, a razão da confusão era em parte uma inabilidade para produzir um campo elétrico forte o suficiente para demonstrar a corrente elétrica interna no complexo muscular-nervoso. Mas particularmente nos experimentos feitos por Alexander von Humboldt, ambas, as eletricidades puras do metal e as eletricidades “animais” internas, estavam presentes. Volta inventou a bateria com base no último; o Romantismo pôs seus trilhos nesses interesses científicos, tentando unir metafísica com física, biologia e agora química, com base na última.

O assunto sobre os “órgãos elétricos” vem da ciência do Iluminismo; os cientistas britânicos Henry Cavendish (1730-1810) e John Walsh (1726-1795) debateram nos anos 1770 se a enguia possuía tais “órgãos”. A descoberta de Galvani, entretanto, intensificou a parte fisiológica do debate, e quando a controvérsia atingiu seu ponto alto, nos anos 1790, ela se misturou com os debates sobre força vital para produzir uma mudança no conceito de vida. Central para essa mudança foi Alexander von Humboldt.

[p. 186] Volta já havia perseguido diretamente a possibilidade de um órgão elétrico, quando Humboldt participou de um longo trabalho sobre “as fibras excitadas dos membros e músculos” em 1797. O trabalho experimental que ele fez, argumentou, visou explorar a diferença entre matéria física e orgânica – os próprios termos do debate sobre força vital estavam em questão na localização do órgão elétrico. Nos dois primeiros anos após a publicação do Gênio de Rhodes, Humboldt guinou sua narrativa para um programa científico. Tendo trabalhado nesse problema por alguns anos, Humboldt agora alegou ter uma resposta pelo menos parcial sobre a excitação do órgão, comportando-se da mesma forma que a corda de um instrumento musical tocada pelo artista. Humboldt demonstrou que ambas as atividades, “galvânica” e “elétrica”, eram possíveis – a interação entre músculo e nervo era ela mesma uma relação de excitabilidade local. A questão sobre onde a excitabilidade se localizava – se ela fluía através ou originalmente “dentro” do músculo ou do nervo – tornou-se central. A “irritabilidade” de Haller estava, assim, destacada para pesquisa. Humboldt apelidou o potencial galvânico de “excitabilidade” (Erregbarkeit), usando a terminologia em voga no sistema médico de John Brown. Um fluído separado – fluído Galvânico – carregava impulsos través dos nervos e para os músculos. Crucialmente, a resposta galvânica poderia ocorrer apenas onde um certo nexo ou polaridade de um músculo e nervo – um par de órgãos – estavam presentes. A noção era de que o experimento poderia localizar diferentes forças na organização dos corpos. Schelling adotaria essa noção, mas de forma inversa: o órgão era necessário para a expressão de qualquer força, sua especificidade a base para diferentes tipos de matéria, com vida animal essencialmente elétrica.

Johann Wilhelm Ritter forneceu o passo final para Schelling, numa célebre conferência de 1798 intitulada Prova de que um galvanismo constante acompanha os processos vitais no reino animal. A heterogeneidade dos condutores era necessária para ambas as reações elétricas e galvânicas, como Volta havia percebido mais cedo nos debates. Mas Ritter estava insatisfeito com a polaridade do músculo e do nervo, e alegou que o próprio nervo é que se polarizava. Em parte pela experimentação nos próprios sentidos – eletricidade positiva e negativa seria capaz de produzir polaridade nos gostos, por ex. ácida e alcalina -, Ritter demonstrou a heterogeneidade dos nervos. Ao experimentar nervos que não combinavam com os músculos para produzir movimento, mas que diretamente levavam a sensações, Ritter deixou mais preciso o sentido pelo qual os órgãos eram elétricos. Ele concluiu [p. 187] interpretando esse sentido mais preciso como universal: tanto o reino anorgânico quanto o mundo animal poderiam, desde que contivessem heterogeneidade potencial suficiente, produzir fenômenos elétricos. O órgão elétrico, Ritter sugeriu, permanecia em estado de polaridade ou indiferença, aguardando por um impulso. E assim era no universo inteiro, o “grande animal”.

Schelling adotou esse modelo, mas o estendeu ao problema da cognição, da vida, dos sentidos e do fundamento da razão (…) em termos da heterogeneidade radical e do potencial gerado por ela. Alguns órgãos reuniram o mundo das forças; e alguns órgãos eram as localidades operativas dos sentidos. Mas órgãos eram também a base da cognição racional, da mente em geral e da possibilidade de construir e reproduzir o mundo. Porque os homens conheciam o mundo através de sínteses de estados heterogêneos, eles também fizeram o mundo dessa maneira.

Schelling usou o sistema de forças e o problema de sua expressão para reconfigurar a noção de órgão. Conforme vimos, esse órgão seguia primeiramente e de forma geral os usos de Herder e Blumenbach. Era um referendum universal, aplicado para qualquer situação de dificuldade mereológica. Essas situações eram certamente legião para o conceito de Natureza de Schelling. De fato, a própria “Natureza” era, conforme tenho argumentado, apenas legível sob uma cifra organológica. Os órgãos – tal como foram para Leibniz – estiveram sempre presentes. Eles eram o ponto crucial ontológico de uma Naturphilosophie Crítica, a que foca no juízo, na ausência de asserção de outras faculdades fundamentais. A mudança de Schelling aqui exigiu que fossem doutrinas dialéticas duplas (e eventualmente triplas), que ele desenvolveu para além dos textos que expus até agora neste capítulo. Tendo particularizado esses órgãos, ele os eletrificou. Ao fazer isso, ele refinou a noção de órgão natural e tornou possível uma instrumentalização mútua entre filosofia e ciência.


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