Husserl - o mundo, solo universal da crença
Tradução do parágrafo 7 de: HUSSERL, Edmund. Expérience et jugement: recherches en vue d’une généalogie de la logique. 2e éd. Paris: Presses Universitaires de France, 1991. (Epiméthée). (tradução cotejada entre a versão francesa e em espanhol de HUSSERL, Edmund. Experiencia y juicio: investigación acerca de la genealogía de la lógica. México: Universidad Nacional Autónoma, 1980, por Marcio Miotto, para fins didáticos)
§ 7. O Mundo, solo universal da crença enquanto sempre já dado a toda experiência de objetos singulares
[p. 32] Para responder a todas essas questões, é preciso escrutinar mais profundamente a essência e a estrutura da experiência antepredicativa. Retornemos, para isso, ao que já foi dito. O conceito de experiência como doação de objetos individuais em sua ipseidade foi tomado de maneira tão ampla que não lhe cai apenas a doação dos objetos individuais em sua ipseidade, segundo o modo da certeza simples, mas também as modificações dessa certeza, mesmo as modificações da experiência real sob a forma do como-se. Se tudo isso está igualmente incluso no conceito de experiência, permanece que a experiência que se realiza em meio à certeza relativa ao ser é particularmente privilegiada. Isso não apenas porque todo vivido da imaginação, toda modificação em “como se” da simples experiência se dão precisamente como modificação, mudança e transformação das experiẽncias anteriores e se remetem geneticamente a elas; mas também porque as modalizações da simples certeza de crença em conjectura, verossimilhança etc., são modificações de uma consciência originária simplesmente crente que é o meio no qual todo ente, como objeto de experiẽncia, é para nós de saída simplesmente pré-dado – e assim permanece também por tanto tempo quanto o curso ulterior da experiência não dá [p. 33] a ocasião de duvidar, de efetuar alguma modalização. Antes que se instaure uma atividade de conhecimento, sempre os objetos já estão aí para nós, dados numa certeza simples. Em seu início a atividade de conhecimento os pressupõe. Eles estão aí para nós numa certeza simples, querendo dizer isso que nós os visamos como entes e como sendo tais, como se impondo a nós antes do conhecimento, e isso de diversas maneiras. Desse modo, é enquanto simplesmente dados que eles colocam em movimento e suscitam a atividade de conhecimento na qual eles recebem sua forma e seu caráter de direito, que eles se tornam o nó permanente das atividades de conhecimento tendo por fim “o objeto sendo verdadeiramente”, o objeto tal como ele é na verdade. Antes que se institua o movimento próprio do conhecimento nós temos “objetos visados”, visados simplesmente na certeza da crença; isso é assim até que o curso subsequente da experiência, ou a atividade crítica imanente ao conhecimento, abalem esta certeza de crença, modifiquem-na em “não assim, mas de outro modo”, façam dela uma “conjectura”, ou que ao contrário eles confirmem em sua certeza o objeto visado que então “é realmente tal ou qual”, “é verdadeiramente”. Nós podemos dizer também que antes que se institua o movimento do conhecimento, o objeto do conhecimento já está lá, como uma potência que vai se tornar enteléquia. Por essa essência prévia, temos em vista o seguinte: a saber, que o objeto nos afeta como intervindo no plano de fundo de nosso campo de consciência, ou mesmo que ele já está em primeiro plano, eventualmente já apreendido, mas apenas em seguida desperta o “interesse de conhecimento”, esse interesse que se distingue de todos os outros interesses da prática concreta. Mas, previamente a essa apreensão, há sempre a afecção, que não é o afetar de um objeto isolado singular. Afetar quer dizer: destacar-se de um entorno que está sempre co-presente, atrair sobre si o interesse, eventualmente o interesse de conhecimento. O entorno está aí como domínio do que é pré-dado, segundo uma doação passiva, isto é, que não exige, para já estar aí, [p. 34] nenhuma participação ativa do sujeito, nenhuma orientação do olhar da apreensão, nenhum despertar do interesse. Toda atividade de conhecimento, toda orientação rumo a um objeto singular em vista de apreendê-lo pressupõem esse domínio prévio de dado passivo; o objeto afeta a partir de seu campo, ele é um objeto, um ente entre outros, ele já está pré-dado numa crença passiva; seu próprio campo representa uma unidade de crença passiva. Podemos dizer, igualmente, que toda atividade de conhecimento tem sempre por solo universal um mundo; e isso designa em primeiro lugar um solo de crença passiva universal no ser, que é pressuposto por toda operação singular de conhecimento. Tudo o que, como objeto que é, é uma meta de conhecimento, é um ente residindo sobre o solo do mundo, e esse mundo se impõe a si mesmo como sendo segundo uma evidência incontestável. Um momento desse mundo, visado de saída como sendo, pode bem se revelar como não sendo; a consciência pode levar a uma correção das visadas anteriores de ser desse ente singular: tudo isso significa apenas que ele não é mais assim, mas de outra forma, essa correção sendo entendida sobre o solo que constitui o mundo como mundo que é em totalidade.
Esse solo universal da crença no mundo é o que pressupõe toda prática, tanto a prática da vida quanto a prática teórica do conhecer. O ser do mundo em sua totalidade é o que não precisa ser dito, o que não é jamais posto em dúvida, o que não resulta de uma atividade do juízo, mas que constitui o pressuposto de todo juízo. A consciência do mundo é uma consciência que tem por modo a certeza da crença: ela não é obtida por um ato expresso que se inseriria na continuidade do vivido, como ato de posição do ser, de apreensão do ente, ou mesmo como ato do juízo predicativo de existência. Pois todos esses atos já pressupõem a consciência do mundo na certeza da crença. Se eu apreendo em sua particularidade um objeto qualquer de meu campo de percepção, por exemplo, se eu dirijo meu olhar a um livro posto sobre a mesa, eu apreendo então um algo que para mim é um ente e já o era [p. 35] antes, que já estava “aí”, “em meu escritório”, mesmo que eu não estivesse mais ainda virado na direção dele; exatamente da mesma maneira esse escritório inteiro, que agora sim se introduziu no meu campo de percepção, já estava aí para mim com todos os objetos que a percepção levantou, com o lado do cômodo que não é visto, com seus objetos familiares e dotado do sentido: “cômodo da casa”, esta se situando na rua que me é familiar, que é ela mesma a rua de minha cidade etc.. Assim todo ente que nos afeta, nos afeta sobre o solo do mundo, ele se dá para nós como um ente visado como tal; e a atividade do conhecimento, atividade judicativa, reduz-se a examinar se o ente é verdadeiramente tal como se dá, tal como ele foi visado, se ele é verdadeiramente um ente de tal ou qual natureza. O mundo, como mundo que é, constitui o pré-dado universal passivo prévio de toda atividade de juízo, de qualquer empreendimento de um interesse teórico. Sem dúvida é verdadeiro que o próprio do interesse teórico coerente é realizar-se no sentido de um conhecimento da totalidade do ser, querendo dizer isso um conhecimento do mundo, mas isso é posterior. O mundo como totalidade está sempre já dado passivamente na certeza, e a orientação do conhecimento rumo a um ente singular é geneticamente mais originária que aquela em direção ao mundo como totalidade – quer esse ente singular tenha se tornado duvidoso em seu ser ou em seu ser-assim, exigindo um exame crítico do pensamento teórico, quer ele, sem ser duvidoso em seu ser, exija uma contemplação mais minuciosa para ser conforme aos fins de uma atividade prática.